quinta-feira, 17 de março de 2011

A LIBERDADE E EL-REI

I
1. A primeira imagem que de El-Rei se pode ter é porventura a faustosa imagem da grandeza. Assim ele anda pintado coloridamente na imaginação infantil e na de todos os Povos. E no entanto, a quem detidamente o encare, El-Rei aparecerá, por baixo da roupagem fulgurante, como homem nu de aparatos, casado com a pobreza, violentamente atirado para longe dos próprios desejos... Se o primeiro momento da imagem nos dava um Senhor poderoso, o primeiro momento da ideia dá-nos um servo. El-Rei é um cativo.
Quem cativou El-Rei? – o Poder o encadeia: o próprio Poder que assume. É ele que o arrasta a uma esfera que não é da sua natureza. Homem, e mais nada senão homem, tudo nele está a clamar exigências e pendores comuns. E, por contraste, tudo nele se passa: não à margem do que é comum – o que seria ainda pouco – mas, dentro do comum, por um modo diferente. A análise da vida de El-Rei manifestaria, uma a uma, mil diferenças. Todas são resultantes de uma só causa: o Poder.
O poder real não pertence a El-Rei: desce sobre ele. Nada na natureza de El-Rei o está prometendo ou anunciando. El-Rei, por natureza, tem poderes próprios de homem: físicos e espirituais, mas só humanos. O poder real é de outra ordem. Não vem da natureza: vem de Deus.
Decerto: nada do que existe tem outra origem que não seja Deus. Criada por Deus a natureza humana, não há poder natural que não venha de Deus; mas por modo indirecto. As causas segundas agem plenamente; e tudo se passa (em certo sentido) como se não existisse Causa Primeira. A esta regra se subtrai o poder político. É a este que com perfeita adequação se aplica a fórmula bíblica: omnis potestas a Deo.
Esta ligação directa com Deus, este ter Deus como fonte imediata, faz com que o poder político pareça aproximar-se de uma esfera que não é política: a esfera religiosa.
Nada mais falso e nada mais grave que esta impressão sedutora! O vínculo político enlaça com Deus o chefe, o Rei (ou, se quiserem, a colectividade, mas como um todo). O vínculo religioso enlaça com Deus todos os homens, um a um. O segundo é, o segundo não é exigido pela natureza do ser vinculado. Religião e Política são irredutíveis.
A quem subir da ordem natural (em que o homem aspira ao Criador) à ordem sobrenatural (em que, pelo mistério da Redenção, o Pai Se fez presente ao homem e o faz seu filho), pode parecer agora que a Religião se torna mais semelhante à Política, pois o vínculo sobrenatural enlaça com Deus, antes de todos, o Pontífice. Mas esta semelhança formal a nada conduz. O Estado é da linha da Criação. A Igreja é da linha da Redenção. Além de que, mais ainda (se é possível) que na Religião natural, aqui o que Deus procura é cada homem de per si, o que na ordem política não tem sentido.
E no entanto, apesar de bem distinta do plano religioso, a esfera política está mais directamente ligada a Deus que a esfera individual ou a familiar (não sobrenatural) ou qualquer esfera simplesmente associativa.
Assim ligado ao Criador por um nexo imediato, o Rei vive uma vida que a sua natureza não continha nem fazia prever. A sua existência não lhe condiz com a essência. Sendo mais nobre que ela, eleva o Rei ao plano do sagrado. O sagrado não pertence apenas à ordem sobrenatural. E que outra coisa é, na ordem natural, senão aquilo cuja existência ultrapassa a própria essência?
2. Embora, no conjunto dos poderes, vindos todos de Deus, o poder real constitua excepção; embora a Causa Primeira aqui nos pareça actuar directamente, dir-se-ia tão grande a força da lei universal, que, olhando a certa luz, já o próprio poder político nos mostra uma origem puramente natural.
O Poder, por essência, vem de Deus . Na existência, porém, é a História – o Povo na História – que o desenha e suporta.
3. Eis, pois, El-Rei duplamente cativo do Poder. Para longe a roupagem fulgurante! Para longe a própria natureza, exigente, em humana medida, de humanas ambições... Como a água cantante que jaz cativa, porque há-de servir para sinal de Deus; como o cordeiro que Abel sacrificou; como o pão e o vinho de Melquisedec – esse homem foi distinguido dos outros, para ser, fora de si mesmo, numa esfera que não é a sua, o senhor de todos: incluindo em todos aquele que ele próprio é.
Deus o cativou; a História o conserva cativo. Um vínculo, uma servidão originária, que por geração se transmite como o pecado de Adão, faz de El-Rei o homem mais despido de aparatos, companheiro da pobreza, exilado de si mesmo... Para cumprir.
II
El-Rei é um cativo: prisioneiro de Deus e da História.
E, no entanto, aos nossos ouvidos soa a palavra triunfante: Rex noster libert est. El-Rei é livre! E este é o segundo mandamento da ideia, contrastante também com o segundo momento da imagem, que nos daria um Rei preso por etiquetas, escravo de cortesãos ou do seu próprio orgulho...
Quem libertou El-Rei? Quem lhe quebrou as grades do cativeiro? Deus e a História (a História, de que ele mesmo é agente). Quem o cativou, agora o liberta. A servidão que El-Rei tem de cumprir; o seu cativeiro e o seu serviço consistem em ser livre. É a ser livre que Deus e a História o obrigam.
A sua liberdade nada tem que ver, no entanto, com a sua condição de indivíduo. Livre, sim: porém, apenas como sumário, síntese e imagem do Povo seu carcereiro. O grito de triunfo Rex noster líber est só tem um sentido: significa exactamente o mesmo que: Nos liberi sumus. El-Rei não é livre para si próprio. Não são os seus instintos, os seus desejos, as suas tendências de homem que se libertam. Ao contrário: tudo isso se encontra sujeitado.
Para uma coisa é livre, e então plenamente, exuberantemente, loucamente: para que os seus súbditos possam afirmar, intrépidos: Nós somos livres! É esta a liberdade real: a liberdade de que está cativo.
Tão forte prisão é esta liberdade, que basta ao Rei deixar de ser livre para deixar de ser Rei. «O Rei é livre» é uma fórmula de identidade. No dia em que a liberdade individual de El-Rei, sepultada na régia existência, revoltando-se deixar de coincidir com a liberdade colectiva (que é a própria liberdade de El-Rei enquanto Rei), o rompimento será fatal. Fatal, porque automático. Um Rei não livre é, ipso facto, um não-Rei.
III
Com os vínculos de que é prisioneiro, modela El-Rei a liberdade de todos. O seu poder é essencialmente libertador. Nele, a natureza humana está cativa, para que nos outros homens esteja livre. Libertador da natureza, é às liberdades naturais que El-Rei se sacrifica; não à entidade metafísica que um Humanismo unilateral imaginou. Deus suscitou El-Rei para servir os homens; não para servir ideias.
Quatro aspectos se podem considerar no serviço político (ou poder político) que El-Rei desempenha, quando encarado sob o ângulo da liberdade:
a) Defende cada indivíduo ou cada colectividade das abusivas intromissões alheias; está nisto o que legitimamente se pode chamar o poder moderador de El-Rei: o Rei exerce o «poder moderador» na medida em que limita ao seu âmbito próprio os poderes naturais dos indivíduos e da sociedade, integrando-os na unidade política da Nação. Aspecto negativo, nem por isso deixa de ser fecundo.
b) Por acções negativas e positivas, é próprio do poder real garantir a cada indivíduo ou comunidade uma existência conforme com a sua própria essência. Aqui se manifesta em supremo grau a vocação de El-Rei para libertador da natureza.
c) Pela sua segunda natureza, que é o cuidado político, El-Rei dispensa do zelo geral os homens e as sociedades. Todos devem dar para o Bem Comum a sua quota-parte. Todos devem ter o Bem Comum como a suprema regra natural. Bem certamente! Mas o Rei lá está, em nome de todos; substituindo, aos cuidados políticos dos outros (que, por mais constantes, serão sempre acidentais), o seu cuidado político substancial, que é o seu modo de ser enquanto Rei. É como participantes do poder real que os participantes hão-de participar do cuidado político, do zelo geral.
A El-Rei compete escolher os súbditos, não aos súbditos escolher El-Rei. Mas essa escolha é a dos que em união com ele devem ser, na esfera política, os promotores do Bem Comum. Nos seus planos próprios, indivíduos, famílias, corporações, municípios, rasgam entretanto os seus caminhos, escolhem democraticamente os que entre si conhecem como melhores, vivem a sua vida... Porque El-Rei se consagrou ao Bem Comum, todos podem consagrar-se aos bens particulares. E de tudo resulta a harmonia da Nação.
d) Livra a Nação do caos sempre possível dos poderes desencontrados, fortalece-a, defende-a, enobrece-a. E, assim, não apenas torna possível, mas realiza, a aspiração essencial de qualquer nacionalidade: a independência. É esta, mais que todas, a função real: dar à Nação a existência que a sua essência pede: a existência política. A Nação é o Reino.
Deste modo cumpre El-Rei o seu destino de libertador. Ele é o que desencadeia os poderes naturais. Mas há um poder que ele não pode desencadear: o poder sobrenatural de cada homem se tornar filho de Deus. Não o pode desencadear, porque esse poder não deriva do sangue nem da carne, mas somente de Deus. Nenhum homem tem o poder de se tornar filho de Deus. Por isso mesmo, não é possível a El-Rei libertar esse poder. Não pertence a El-Rei dar liberdade ao seu Senhor. Mas Deus espera do seu servo um supremo serviço: que desencadeie o poder que o homem tem de corresponder àquele poder divino. Assim se cumpre o ciclo sagrado da existência real.
Mas... ele? Qual o destino desse homem que, ao assumir o Poder, foi assumido, absorvido, por ele? Para além da própria missão política, que com ele morre, fica a pessoa, que no sacrifício do indivíduo encontrou a sua plenitude[1].
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[1] De colaboração com Afonso Botelho foi pensado e elaborado este ensaio (1971).
Nota: não confundir o conceito cristão de "origem divina do poder" (omnis potestas a Deo) aqui afirmado - ponto de filosofia acolhido por Henrique Barrilaro Ruas - com qualquer conceito derivado da teoria do "direito divino do reis" (detenção do poder régio por "mandato de Deus"), como foi defendido pelo Marquês de Pombal, e em geral pelos iluministas, contra a tradição da Monarquia portuguesa.
No texto de uma conferência intitulada «O Drama de um Rei» (D. Carlos I), publicada na revista Gil Vicente em 1965, o Autor apresentou o conceito cristão de Poder Régio da tradição portuguesa - conceito adoptado pelos integralistas lusitanos - contrastando-o com as diferentes concepções da Realeza, desde as remotas civilizações pré-clássicas até à era contemporânea do ideologismo (nota desta edição).
(Henrique Barrilaro Ruas, A liberdade e o Rei, Lisboa, 1971, pp. 130-137)

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