sexta-feira, 15 de julho de 2011

ACTUALIDADE DE RAMALHO ORTIGÃO

Combater apenas o analfabetismo do povo por meio de escolas primárias e de escolas infantis sem religião e sem Deus, não é salvar uma civilização, é derruí-la pela base por meio do pedantismo da incompetência, da materialização dos sentimentos e do envenenamento das ideias. Quem ignora hoje que foi a perseguição religiosa e o domínio mental da escola laica o que retalhou e fraccionou em França a alma da nação? Quem é que nesse tão amado, tão generoso e tão atribulado país não está vendo hoje objectivar-se praticamente o profético aforismo de Le Bon: «É sobretudo depois de destruídos os deuses que se reconhece a utilidade deles!»
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Em Portugal somos hoje um povo medonhamente deseducado pela inepta pedagogia que nos intoxica desde o princípio do século XIX até os nossos dias.
O Marquês de Pombal teve a previsão desta crise quando por ocasião da expulsão dos jesuítas ele procurou explicar que o aniquilamento da Companhia de Jesus não decapitaria a educação nacional porque os eruditos padres da Congregação do Oratório vantajosamente substituiriam como educadores os jesuítas expulsos.
Com a influência intelectual dos oratorianos, introdutores do espírito criticante de Port Royal na renovação da mentalidade portuguesa, condisse realmente o advento de um dos mais brilhantes períodos da nossa erudição.
Vieram, porém, mais tarde os revolucionários liberais de 34, os quais condenaram, espoliaram e baniram os padres da Congregação do Oratório como Pombal espoliara e banira os padres da Companhia de Jesus.
A obra liberal de 1834 – convém nunca o perder de vista – foi inteiramente semelhante à obra republicana de 1910. Nos homens dessas duas invasões é idêntico o espírito de violência, de anarquismo e de extorsão. Dá-se todavia entre uns e outros uma considerável diferença de capacidade.
Os de 34, de que faziam parte Herculano, Garrett e Castilho, eram espíritos oriundos da Academia da História, da livraria das Necessidades e do colégio de S. Roque.
Tinham tido por mestres ou por companheiros de estudo homens tais como António Caetano de Sousa, o autor da História Genealógica; Barbosa Machado, o autor da Biblioteca Lusitana; Bluteau e os colaboradores do seu Vocabulário; Santa Rosa de Viterbo, o autor do Elucidário; João Pedro Ribeiro, o admirável erudito iniciador dos altos estudos da nossa história e precursor de Herculano; António Caetano do Amaral, o infatigável investigador da História da Lusitânia; D. Frei Caetano Brandão, seguramente o mais elevado espírito e a mais formosa alma que deitou o século XVIII em Portugal; o padre Cenáculo, o mais prodigioso semeador de bibliotecas; o padre António Pereira de Figueiredo, o autor do famoso Método de estudar; Félix de Avelar Brotero, o insigne naturalista; o polígrafo abade Correia da Serra, e outros que não menciono porque teria de reproduzir um copioso catálogo se quisesse dar mais completa ideia do que foi a cultura portuguesa nessa fase da nossa evolução literária.
Os novos revolucionários de 1910, com excepção honrosa dos que não sabem ler, não tiveram por decuriões senão os seus predecessores revolucionários liberais de 34. E daí para trás - o que quer dizer daí para cima - nunca abriram um livro com medo da infecção clerical, porque todos eles acreditam com fetichistico ardor que o clericalismo é o inimigo, segundo a fórmula célebre com que o príncipe de Bismarck conseguiu sugestionar Gambetta para o irremediável desmembramento moral da França.
Ramalho Ortigão, em carta dirigida a João do Amaral em 1914.
(In Ramalho Ortigão, Últimas Farpas, 1911-1914, Lisboa, Clássica Editora, 1993, pp. 159sqq)

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