segunda-feira, 3 de setembro de 2012

PERDIDAS PARA SEMPRE? O ROUBO DAS JÓIAS DA COROA PORTUGUESA.

O Estado foi indemnizado em seis milhões de euros mas terá de os devolver se as peças algum dia aparecerem.
De entre as muitas dezenas de janelas do edifício do Museu Municipal de Haia, os autores do assalto tiveram o atrevimento de escolher a que ficava mesmo em frente ao gabinete dos seguranças. Mesmo assim, quando partiram um dos vidros para entrar, na madrugada de 2 de Dezembro de 2002, entre as 3h30 e as 4h15, ninguém deu por nada. A exposição “Diamante: da pedra bruta à jóia”, que reunia as melhores e mais valiosas peças das coroas holandesa, portuguesa, francesa e inglesa, estava em perigo.
No interior do museu havia uma enorme estrutura de madeira, a imitar uma caixa-forte, construída propositadamente para expor as jóias e onde existiam quatro câmaras de videovigilância. Lá dentro, as peças estavam espalhadas por 28 expositores, cada um deles protegido por um alarme. Foi para lá que os ladrões se dirigiram imediatamente. Antes tiveram o cuidado de entrar pela porta de saída da caixa-forte, de maneira a não fazer disparar os sensores do museu. Depois, e com a ajuda de um martelo, rebentaram seis vitrinas, tiraram as jóias – seis portuguesas, além de peças inglesas, francesas e holandesas – e saíram pela mesma janela por onde tinham entrado, em frente à casa dos seguranças. No interior estavam dois polícias que, estranhamente, não se aperceberam de nada.
O alerta só seria dado às sete da manhã. Quando a polícia chegou ao museu, esperava-se que as imagens de videovigilância permitissem chegar a alguma pista mais ou menos consistente. Mas depressa a expectativa deu lugar ao desânimo: estranhamente, as quatro câmaras da caixa-forte não estavam a gravar em tempo real. Além disso, não tinham sistema de infravermelhos para gravar no escuro e nem sequer estavam ligadas ao gabinete dos seguranças. Nas horas seguintes, e à medida que os investigadores avançavam na recolha de pistas, mais eram notórias as falhas de segurança do museu holandês. Um exemplo: no exterior do edifício existiam três câmaras mas, mais uma vez estranhamente, todas estavam apontadas para um pavilhão praticamente vazio.
AS JÓIAS ROUBADAS Sete anos depois, em Outubro de 2009, o caso seria definitivamente arquivado sem que os autores do crime tivessem sido encontrados, ou as jóias da coroa recuperadas. Portugal perdia assim as mais importantes peças do seu espólio régio. O Palácio Nacional da Ajuda tinha emprestado 15 jóias à exposição do Museu de Haia. A mais impressionante era um diamante de 135 quilates, considerado um dos maiores do mundo e que pertenceu inicialmente a D. João VI. Por ser uma das peças mais impressionantes de toda a exposição, o diamante não escapou à cobiça dos ladrões – que também levaram um par de alfinetes em forma de trevo, em ouro, platina e com diamantes-rosa e brilhantes, mandados desenhar em França na segunda metade do século XIX. Desapareceram ainda uma gargantilha com 32 brilhantes, em prata e ouro, da segunda metade do século XVIII, oferecida por D. João VI à rainha Carlota Joaquina; um anel também de D. João VI com um diamante de 37 quilates, em prata e ouro, da segunda metade do século XVIII; e um castão de bengala de D. José I, de ouro, com 387 brilhantes.
O DIA SEGUINTE O governo português só foi informado do roubo no dia seguinte. O então ministro da Cultura, Pedro Roseta, que autorizara a viagem das jóias para a Holanda, classificava a situação como “uma perda trágica para Portugal”. A Interpol pôs-se imediatamente em campo e a polícia holandesa avançava nos jornais que o assalto só poderia ter sido executado por “profissionais que sabiam quais eram as peças mais valiosas” da exposição. A afirmação tinha uma razão de ser: as jóias portuguesas eram louvadas como das mais preciosas do mundo do ponto de vista gemológico. Em vários jornais estrangeiros chegou a escrever-se que se tratava da maior perda de sempre para Portugal.
O estado era de emergência e foram marcadas duas conferências de imprensa para acalmar os ânimos dos jornalistas: uma em Haia, outra em Lisboa. Mas se o assunto era o mesmo, a abordagem não poderia ser mais diferente nos dois países. Em Lisboa, Pedro Roseta estava acompanhado pela directora do Palácio Nacional da Ajuda, Isabel Silveira Godinho, e pelo presidente à data do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR), Luís Calado. Nenhum deles avançou nada de concreto sobre o assunto, invocando “instruções da Interpol”. Porém, em Haia, o director do museu, Bert Molsbergen, informava, entre outras coisas, que as jóias de Portugal eram as mais valiosas de todas as que tinham sido levadas e revelava mesmo o valor do seguro português: 6,5 milhões de euros.
Entretanto, em Portugal, a opinião pública não dava tréguas. Exigiam-se explicações nos jornais, surgiam petições na internet a favor da “suspensão imediata das pessoas envolvidas no processo de autorização da saída das jóias”. Mas com o tempo e sem pistas sobre o paradeiro das peças, o assunto foi caindo no esquecimento.
A INDEMNIZAÇÃO Já em 2006, nas Jornadas Europeias do Património, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, anunciava que o inquérito interno ao processo de empréstimo das jóias não havia chegado a qualquer conclusão “quanto a responsabilidades”. Assim sendo, o Estado receberia, da Câmara de Haia e das seguradoras do museu, uma indemnização no valor de 6,1 milhões de euros. Em Dezembro de 2006, e depois de quatro anos de espera, o Estado português recebia o dinheiro através do cofre do Ministério das Finanças. Parte (1,3 milhões) foi usado para comprar, num leilão, a tela “Deposição de Cristo no túmulo” de Tiepolo, pintor veneziano do século XVIII, para a colecção do Museu Nacional de Arte Antiga e que corria o risco de ser vendida para fora do país. Outra parte da verba foi usada para construir um cofre para guardar o que sobrou das jóias. Para o ano, o Palácio da Ajuda deverá entrar em obras e o governo já anunciou que serão financiadas com o que sobrou da indemnização.
Depois do desaparecimento das seis peças, as jóias da coroa poucas vezes voltaram a ser vistas ou foram emprestadas. Mas, apesar de todos os cuidados, D. Duarte de Bragança deixou um aviso público em 2010: o espólio régio está escondido à guarda do Estado, num cofre, mas muito mal guardado e sem segurança. “Não faz sentido nenhum que as jóias da coroa, fantásticas, lindíssimas, estejam escondidas num cofre, ainda por cima mal guardadas. Ainda as roubam. Estão num cofre sem segurança, podem ser roubadas por quem quiser”, garantiu o monarca.
AS JÓIAS QUE RESISTEM Joalharia, paramentos, insígnias. As jóias da coroa portuguesa foram perdendo e ganhando património ao longo de mais de nove séculos de História. A maior parte do conjunto que ainda resiste remonta aos reinados de D. João VI e D. Luís I. Mas a fase de maior imponência das jóias foi atingida no final do século XV, quando Portugal reunia uma enorme quantidade de peças, culpa de D. Manuel – amante da ostentação. No entanto, grande parte dessas jóias acabariam por se perder durante a tomada da coroa portuguesa pelos Habsburgos. Noutros momentos da História, as jóias serviram de moeda de troca em situações difíceis. Em 1581, o neto de D. Manuel, D. António de Portugal (o prior do Crato) resistia à união ibérica e, aclamado rei pela população, conseguiu recolhê-las antes de Filipe I ser feito rei de Portugal e fugiu para França – onde foi recebido pela rainha consorte Catarina de Médici, a quem vendeu algumas em troca do apoio francês nos planos para recuperar o trono.
Mais tarde, em 1583, quando as forças luso-francesas foram vencidas nos Açores, D. António foi pedir asilo a Isabel I de Inglaterra e teve de lhe entregar um conjunto de jóias da coroa como garantia. Entre elas estaria o famoso Espelho de Portugal – um diamante quadrangular de 30 quilates.
Noutras alturas, as peças serviram para financiar quezílias e arrufos entre vizinhos. Na Guerra da Restauração, D. João IV, da dinastia de Bragança, viu-se obrigado a vender muitas peças para financiar o conflito com Espanha. Anos depois, parte do conjunto não sobrevivia à tragédia: em 1755, o Paço da Ribeira era destruído no terramoto de Lisboa e perdia-se grande parte do espólio. Umas jóias ficaram destruídas. Outras foram roubadas. Outras, simplesmente, perderam-se.
Mais tarde, quando a corte de D. João VI esteve no Brasil, o monarca mandou fazer um novo conjunto de peças, desenhadas pelo joalheiro real na oficina António Gomes da Silva. Entre as novas jóias estavam uma coroa e um ceptro. Depois, quando Maria Pia de Sabóia se tornou rainha, D. Luís I também mandou fazer novas peças, entre as quais um manto real.
Por Rosa Ramos, 1 de Setembro de  2012 - Jornal i

1 comentário:

Nuno Castelo-Branco disse...

Extraordinária, a imbecilidade das autoridades do Estado. Além de permitirem a saída de peças - e não as substituindo por boas cópias - a indemnização foi usada para algo completamente diferente daquilo que as jóias representavam. melhor teriam feito em "bater os leilões" europeus, onde regularmente surgem peças outrora perrtencentes a D. Amélia, D. Maria Pia, D. Augusta Vitória e outras personalidades da casa de Bragança.