sábado, 18 de fevereiro de 2012

METÁFORA DA REPÚBLICA

Havia antigamente nas grandes casas umas figuras, masculinas ou femininas, de idade incerta e vestindo de cinzento ou preto, que davam pelo nome de governantas ou mordomos (ainda podemos vê-los em filmes de época ingleses), a quem eram confiadas todas as chaves da casa, que ostentavam com ar austero e grave, por onde quer que circulassem.
Tudo estava sob o seu controlo, desde o inventário de roupas e pratas, às existências da despensa, bem como o comando da criadagem, que era tratada em geral como soldadesca em presença de General. Passavam pelas jóias da Senhora sem as cobiçar, pelos charutos e pelos Porto Vintage do Senhor sem ponta de inveja, pelas pratas do "présentoir", pelo faqueiro e até pelos bifes e pelo caviar sem quaisquer deslumbramentos. Tutelavam, no fundo, a casa e velavam, com fidelidade canina, por cada um dos membros da família. Assumiam a missão com um voluntarismo e uma entrega que estavam muito para além de uma mera relação laboral.
A dedicação foi porém dando lugar a servilismo. Os Senhores deram lugar a Patrões e as governantas e os mordomos converteram-se em empregados. Mais qualificados, mas não especialmente mais dedicados do que os outros. Os nexos de honra foram substituídos por vínculos laborais. Este funcionalismo lida com os patrões com uma subserviência hipócrita. Ocupa-se mais com a gestão da sua imagem do que com a boa governança da casa. Se por acaso falta alguma coisa, isso só é problema se os patrões fizerem perguntas e, nessa circunstância, logo fazem rolar alguma emblemática cabeça, sem que, no entanto, a sua honorabilidade seja minimamente beliscada ou questionada. E os próprios patrões, desde que tenham cuidadas refeições, a horas na mesa, não se perdem com minudências.
Temos tido, na nossa Casa, sucessivas personagens destas que contratámos (por meio de votações que nunca corresponderam, em verdade, a uma autêntica livre escolha) e nós, que há muito abdicámos de ser Senhores sem que ao menos tenhamos aprendido a ser bons patrões, temos vindo a ser, há décadas, espoliados por estes funcionários a quem pagamos e que vão dispensando serviçais menores ao sabor das suas conveniências ou conivências, não sem antes lhes passarem cartas de referência para uma outra qualquer casa, não vão estes denunciá-los pelos seus pecadilhos.
Quem lhes pede hoje, a esses funcionários de zelo aparente, o inventário, as contas, as chaves e uma mínima responsabilidade? Quem? E lá continuamos de dez em dez anos a contratar, por meio de votos, um novo mordomo, de entre a criadagem antes despedida, provavelmente convencidos de que o sindicato dos mordomos tem sede em Portugal…
Dom Vasco Teles da Gama in Diário Digital (15-Fev-2012)

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