Se considerarmos a racionalidade a prática da boa interpretação da realidade, podemos atribuir ao século xx, o do advento das repúblicas, das independências e das “igualdades”, o cognome de “O irracional”. O conhecimento e a aptidão tecnológica definitivamente não conferiram racionalidade ao ser humano: para não nos determos em demasia nos três maiores monstros do século passado, Mao Tsé-tung, José Estaline e Adolf Hitler, aos quais, por junto, se pode atribuir a responsabilidade de quase 200 milhões de vítimas, observe-se o caso do jovem norueguês Anders Breivik, que dominava técnica suficiente para fabricar as bombas que fez explodir em Oslo.
Neste início de milénio no Ocidente suportamos ainda o legado desse trágico século da irracionalidade, da massificação ideológica e do desconstrutivismo laicista, tornado vitorioso por conta dos sofisticados mecanismos de controlo social entretanto desenvolvidos: nunca foi tão simples a gestão de um moralismo de massas, o incremento da religião do Estado, atiçar ressentimentos selectivos, a popularização do consumo de narcóticos, a democratização da alarvidade, sem esquecer a promoção de tremendismos de conveniência, complexos de culpa e puritanismos de substituição. Decididamente, não são só os corpos policiais bem equipados e os ministérios da propaganda sofisticados que mantêm os rebanhos a balir unissonamente, é o caldo vigente que, num panorama de ilusória liberdade individual, impele as pessoas a agirem por imitação, seguindo os cânones eficazmente publicitados pela maioria, à revelia das elites descomprometidas e da estética erudita, relegados à irrelevância pelo índex da adolescentocracia.
De resto, bem sabemos como a utopia da “igualdade” se tornou um bezerro de ouro, e como a liberdade, o valor mais caro à humanidade, será sempre um bem precário, quando não uma vã miragem. Os filósofos, os escritores e os cientistas há muito sentenciaram um prognóstico: a contingência humana é uma incontornável limitação aos seus profundos ensejos de realização, que só o espírito pode alcançar.
Se o Natal de Cristo se desse hoje (e certamente ele se dará amanhã no coração de muitos cristãos, cada vez mais excluídos), de onde viriam os despojados pastores e vigilantes de coração puro? Quantos reis magos dos nossos dias se desprenderiam da sua zona de conforto, do seu conhecimento “científico”, deixando-se guiar pela estrela do Oriente para adorar o Menino Redentor, tão insistentemente profetizado na história pelos profetas? Onde se encontrariam, entre as hordas de “cidadãos” modernos, consumidores criteriosos, público exigente, exemplos da mais simbólica figura do presépio, os pastores, gente desperta e disponível (porque despojada), para o grande Advento da humanidade? Como escutar o silêncio da noite estrelada, essencial para atender à voz do coração, de onde brota o apelo decisivo e o cerne da salvação? Se o nascimento de Cristo acontecesse hoje, para lá dos compenetrados cientistas na NASA ou na AEE, que se limitariam a tirar as medidas ao cometa, quantos de nós atentariam à estrela luminosa apontando o caminho do Natal de Jesus, Deus redentor nascido criança numa manjedoura, que nos é permitido tratar por tu numa relação íntima de afecto profundo?
O império da racionalidade em que urge converter este novo século deverá começar a ser edificado por uma drástica concessão de espaço ao livre arbítrio do homem, único e irrepetível, como chave de um percurso de libertação e felicidade, que estará sempre a montante de quaisquer modas ou agendas ideológicas. O império da racionalidade em que urge tornar o nosso século só poderá emanar do coração dos indivíduos de razão e coração livres, através da prática de uma ecologia do homem que o liberte da poluição que tolda o seu espírito e os seus sentidos. Porque a felicidade só é concebível com pessoas inteiras e mais realizadas: um desafio a que nenhum Estado ou legislação está apto a responder.
João Távora
Um Santo Natal a todos.
* Originalmente publicado a 24 Dez 2011 no Jornal i
Sem comentários:
Enviar um comentário