Na mesma Mensagem, aborda a actual crise que o país vive, uma crise que ultrapassa em muito o âmbito económico. Parece-lhe que uma mudança de regime, no sentido de uma Monarquia Constitucional, poderia ser o caminho para uma renovação nacional?
A crise portuguesa tem basicamente duas origens: ignorância, por um lado, e imoralidade, por outro (não sei em que percentagem). Os crimes económicos que foram feitos contra a economia nacional nestas dezenas de anos foram somente por ganância e corrupção, ou por ignorância. Qualquer dona de casa sabe que, se gasta mais do que tem, acaba mal; como é que os nossos políticos não perceberam que, se gastavam 5 a 10% mais do que aquilo que o Estado tinha, acabavam mal? Internacionalmente denunciava-se essa situação, o professor Medina Carreira denunciava isto, os economistas sérios também o faziam. No entanto, o Estado continuou a fazer isto, até entrar em falência fraudulenta quando o governo Sócrates teve de pedir ajuda internacional. Agora anda toda a gente muito zangada com o médico que vem tratar das nossas doenças, porque dão-nos remédios muito amargos; mas não pensamos que nós é que andámos estes anos todos a estragar a nossa saúde económica: a matar a capacidade produtiva, a destruir a economia e a gastar os nossos recursos e o dinheiro emprestado pelo estrangeiro, a fazer coisas que não produzem riqueza: as auto-estradas, a Expo de Lisboa, o Centro Cultural de Belém... centenas de obras nas Câmaras Municipais, luxos de país muito rico que mesmo países mais ricos do que nós não têm... fizemos isso tudo e agora não temos dinheiro para pagar os salários da função pública. E então vêm uns sujeitos que não percebo se estão de má fé ou se são ignorantes, que são os Juízes do Tribunal Constitucional, e dizem que “não se pode economizar aqui, não se pode economizar ali”, não se pode cortar nada... qual é a solução? Aumentar os impostos, matando-se a economia produtiva. Qual teria sido a vantagem de Portugal ter um rei? É que, como acontece com os países da Europa mais desenvolvida (países escandinavos, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Reino Unido), o rei discretamente avisa os governantes e diz “vocês estão a ir por um caminho perigoso”: eu sei que há corrupção aqui... então discretamente ajuda os governos... de modo que há todo um acrescento à democracia, a figura do rei acrescenta qualquer coisa à democracia que as repúblicas não têm porque os presidentes da República, em Portugal, são todos de uma origem partidária. E portanto estão comprometidos com as políticas – com os erros políticos - cometidos com os partidos, não têm a autoridade para denunciarem os erros que estão a ser cometidos – a não ser o general Ramalho Eanes, que hoje quase toda a gente considera o melhor presidente que tivemos, exactamente porque, como ele disse, tentou agir como um rei constitucional (foi a definição que ele deu do seu próprio mandato).
Num regime monárquico constitucional em Portugal, que mudanças veria no âmbito da Liberdade Religiosa e das relações entre a Igreja Católica e o Estado? Como entende a Laicidade do Estado?
Os regimes monárquicos actuais são todos constitucionais e democráticos, com a excepção de alguns emirados árabes. Creio que o único país da Europa que não tem verdadeiramente uma Constituição é o Reino Unido, cuja constituição é a Magna Carta que vem da Alta Idade Média. Onde há ditaduras é quase sempre nas Repúblicas, há muitas repúblicas ditatoriais hoje e há uns anos atrás eram mais, a maioria na América do Sul e África. Acho que a separação da Igreja do Estado é indispensável na nossa época, só em alguns países muçulmanos é que isso não acontece. O que não quer dizer que, se a maioria dos portugueses são de formação e de ética (e, graças a Deus, de prática) católica, o Estado não tenha de respeitar a religião e a moral da maioria dos portugueses: não quer dizer que não tenha de respeitar também as outras religiões: mas não se podem pôr, digamos, em pé de igualdade, por exemplo no sentido de os muçulmanos quererem que as suas datas sejam feriados nacionais. Não faria muito sentido, considerando que são uma pequena minoria. Mas têm de ser respeitados: eu frequento muito a Sinagoga de Lisboa, tenho ido a cerimónias hindus, etc. Eu acho que todas as religiões são um caminho para Deus, só que cada povo tem uma cultura, e o nosso tem uma cultura cristã, e é essa cultura cristã que faz com que o nosso comportamento seja um comportamento caridoso, benévolo, tolerante, e não um comportamento radical, como outros países do mundo têm, com outras religiões.
Também condena a actual lei do Aborto, referindo que “tem provocado um genocídio encorajado pelo Estado e pago com os nossos impostos”. Que posição defende neste âmbito?
Penso que é o problema mais grave que temos em Portugal. Nós ainda hoje queixamo-nos do genocídio que os nazis fizeram na Alemanha, que os soviéticos fizeram, e dizemos que é inaceitável que os povos tenham aceite essas coisas. Nós, em cinco anos da lei do aborto livre conseguimos exterminar uma geração inteira de portugueses, porque foram mortos mais de cem mil crianças pela lei do aborto – pagas por si, pagas por mim, somos todos cúmplices disso, todos temos uma quota-parte neste genocídio. Quando o número de crianças que nasceram no ano passado foi de oitenta mil, em cinco anos matamos cem mil, matamos mais de uma geração. E isto é, do ponto de vista económico perigosíssimo, do ponto de vista social dramático, do ponto de vista moral é um crime colectivo nacional, que nos corta de algum modo da graça de Deus – um país que aceita, porque aceitámos todos, porque não fomos votar, ou votámos erradamente, ou votámos a favor desta lei, e portanto de algum modo somos todos responsáveis por esta situação. E faz-me muita impressão não ouvir mais protestos contra esta lei: há um movimento aqui em Braga, o Partido para a Vida, que se movimenta contra a lei mas... mesmo no dia dos Santos Inocentes, um dia em que toda a gente falou sobre a maneira como as crianças são maltratadas, não ouvi ninguém a escrever que era preciso reformar esta lei. Em Espanha já se está a reformar a lei do aborto livre, vários países europeus estão a voltar atrás, em Inglaterra deputados do Partido Trabalhista dizem que é uma lei que escraviza as mulheres porque as mulheres são obrigadas a abortar, obrigadas pelos pais, pelos amantes, pelos patrões que dizem “você agora não pode faltar ao trabalho durante seis meses, e portanto faça é um aborto”; portanto é uma lei em que em 90% dos casos vai contra a vontade das mulheres. Quase sempre as mulheres prefeririam ser apoiadas e ajudadas em vez de recorrerem a esta solução.
Falando agora um pouco da sua história, em Angola chegou a liderar em 1972 um movimento de oposição ao Estado Novo, organizando uma lista multiétnica e independente à Assembleia Nacional. Tal atitude valeu-lhe a expulsão de Angola por decisão de Marcelo Caetano. Pode contar-nos um pouco sobre este acontecimento?
Eu organizei a lista, não a cheguei a integrar: era uma lista formada inteiramente por angolanos, a maioria negros, alguns europeus, e tinha como objectivo dar uma alternativa à política angolana dizendo que queriam mais democracia, mais participação, mais justiça, mais representatividade das populações angolanas, mas defendendo que a separação dos vários territórios portugueses era um erro enorme e que Angola tinha todo o direito de ser portuguesa como o próprio território português. O Marcelo Caetano – que tinha já preparada uma espécie de conspiração para “despachar” o ultramar - ficou muito aborrecido e muito incomodado e expulsou-me de Angola. Porque ele tinha feito uma combinação com americanos para a independência de Angola – provavelmente menos dramática da que aconteceu em 1974, mas não sendo também a solução ideal. O ideal era reformar, resolver os problemas que incomodavam grande parte dos africanos – como a justiça, a igualdade, a democracia - e depois, mais tarde, fazer um referendo e saber se o povo queria continuar português ou não. É o que o Marcelo Caetano não aproveitou, o que poderia ter feito – caminhou no caminho errado e conduziu o país ao desastre, que foi de facto o que aconteceu em 1974: em nome da restauração da democracia, nós destruímos a vida, a economia, a paz de milhões de pessoas. Foi preciso esperar trinta anos para finalmente terem novamente uma vida normal em Angola, Moçambique, Guiné etc. – embora na Guiné ainda não tenham essa normalidade. E em Timor, enfim, sofreram tanto. Todos esses mortos, toda esta destruição foi provocada por irresponsabilidade e por uma conspiração internacional entre os EUA por um lado e a União Soviética por outro. E é altura de deixar de sermos enganados, de mentirmos pela história, e de assumirmos o que realmente se passou: não podia ter sido pior. Dito isso, acho que é de todo o nosso interesse ter a melhor colaboração possível com os governos dos países da CPLP, e tentar reformar uma fraternidade e, quem sabe, no meu entender uma união lusófona, uma união dos países de língua portuguesa que poderiam um dia vir a ter uma política económica comum, uma política de defesa, uma moeda comum. É um caminho que poderíamos seguir e que não seria totalmente incompatível com a União Europeia.
Nasceu em Berna em 1945, e teve como padrinhos de baptismo, por representação, o papa Pio XII, a rainha-viúva Amélia de Orléans e a Princesa Aldegundes de Liechtenstein. Chegou a conhecer o Papa Pacelli?
Sim, visitei-o por duas vezes, em criança, e fiquei muito impressionado. Acho que é injusto não estar a ser beatificado quando outros Papas mais recentes estão a caminho da beatificação, só porque era muito conservador em alguns aspectos, como era próprio da época dele; mas foi de facto um homem muito santo, e que além disso correu grandes riscos pessoais para salvar a vida de muitíssimos judeus que estavam a ser perseguidos em Itália e na Alemanha.
Na Arquidiocese de Braga estamos a celebrar um ano dedicado à Liturgia. Que sugestões aponta para tornarmos a liturgia mais bela e mais atraente para os fiéis?
Há uns tempos atrás os meus filhos estiveram connosco em S. Tomé e Príncipe e gostaram imenso de ter ido lá à missa. Hoje perguntam-me porque é que as missas em Portugal não são tão bonitas como as missas em S. Tomé – e foi uma missa que durou duas horas! Mas muito bem cantada, muito participada, com todo um cerimonial, etc. Estive há poucos dias na missa de domingo em Díli, Timor: vieram vários portugueses comigo. Todos choravam, de comoção: uma missa belíssima. Nós temos em Portugal missas muito bonitas, é verdade: temos outras que são, enfim, mal cantadas, em que o coro não tem preparação nenhuma, e às vezes há párocos que precisariam talvez de uma reciclagem sobre como se faz um sermão, como se fala hoje numa linguagem que as pessoas entendam. No Minho há missas muito bonitas e muito bem conduzidas. Houve uma época em que se cometeu o que eu considero um erro, que foi o de meter uma música “leiga” porque se achou que os jovens iriam considerar mais animada. Mas na verdade estragou a beleza das missas. Outra coisa: hoje em dia há a tendência de meter umas canções que ninguém acompanha, que ninguém percebe; por exemplo, a missa no Alentejo, a música segue um ritmo alentejano e os cânticos são alentejanos. E toda a gente percebe, e toda a gente pode acompanhar, porque corresponde à cultura de um povo. Quando as missas correspondem à cultura da população, sobretudo nos meios rurais, mas também nos meios urbanos, as pessoas acompanham. Se não, às vezes metem umas cantorias lá pelo meio que se tornam numa espécie de intervalos musicais, de um espectáculo, que não têm muito a ver. Acho que haveria muita coisa a ser discutida e tratada, reunindo teólogos, especialistas musicais e representantes dos fiéis.