A Rainha. Novecentos anos de história deram a Portugal o tempo necessário para a manifestação de personalidades hoje totalmente esquecidas, mas nem por isso menos determinantes para a afirmação internacional do país que somos. Em períodos onde pesou de sobremaneira o perigo da ocupação estrangeira, o país contou com mulheres exemplarmente exercendo a regência. Na sua grande maioria estrangeiras, cumpriram a função da qual dependia a independência de Portugal. Este é o caso de D. Luísa de Gusmão, talvez a soberana que mais perigos enfrentou durante a sua chefia do Estado, colocando Portugal acima de quaisquer considerações familiares e da sua pátria de origem. No hoje quase obsessivo assunto da assistência social, as rainhas portuguesas marcaram indelevelmente a atenção votada pela Coroa aos mais desprotegidos, em épocas onde a vileza do homem era sobretudo considerada pelo extracto, o berço - ou a ausência deste - onde tinha nascido. A lista é longa, contando-se a Rainha Santa Isabel, D. Filipa de Lencastre, D. Leonor, D. Estefânia e D. Maria Pia, entre aquelas que a memória popular não deixa esquecer. Contudo, quando nestes tempos convulsos alguém se refere à Rainha, a personalidade citada é incontornavelmente D. Amélia. Talvez por ter sido aquela que mais próxima de nós está pela contagem das gerações - as nossas bisavós tiveram-na como referência quotidiana num país constantemente à beira do abismo -, será uma verdade reconhecermos a sorte de podermos reconhecê-la de imediato. Existem milhares de fotografias de D. Amélia de Orleães e mesmo que assim não fosse, restava-nos a grandeza da obra que abnegadamente ergueu num país preocupado com umas tantas pequenezes que insistentemente devoraram todo o século XX e, num misto de mania e teimosia, prosseguem na senda dissolvente da nossa própria - se é que ainda existe - consciência nacional. D. Amélia sintetiza a saudade de muitos portugueses pela Monarquia, significando uma grandeza quase assustadora neste Portugal dado a gente timorata quanto à adopção das novidades, por muito evidentes e benfazejas que estas sejam. Além dos já clássicos autores seus contemporâneos, pelos politicamente rancorosos considerados como desdenháveis panegiristas, poucas biografias de D. Amélia, a Grande, podem ser consideradas como obras fiáveis e distantes das paixões, ódios ou meros intuitos comerciais à semelhança das revistas de um mundo alegadamente cor de rosa e sem qualquer substância.
Folheei o livro de José Alberto Ribeiro, por sinal o novo responsável pelo Palácio da Ajuda. A leitura na diagonal de umas tantas páginas, chama-nos a atenção pelo constante desejo de dar voz a D. Amélia, recorrendo às suas palavras. Se é bem certo que talvez nos tenham sido omissas algumas passagens propiciadoras de novas controvérsias, aquilo que o autor nos deixa, é a multifacetada personalidade de uma mulher antes de tudo consciente dos seus deveres. A banalização que o padronizar "por baixo" impõe como norma, talvez incomode alguns leitores pouco interessados no tentar compreender da mentalidade da época. Os portugueses vivem soterrados pelo anacrónico império de uma certa versão de neo-realismo, quase se exaltando as misérias como máximas provas de bem-aventurança. Vivemos obrigados a enaltecer os Feios, Porcos e Maus. É um fado em tudo contrário à imponente figura daquela que ainda hoje é a Rainha. Se a tudo isto acrescentarmos a volatilidade da política do Portugal do virar do século e as profundas transformações que muito alteraram o país nos últimos cinquenta anos de vigência da Monarquia Constitucional, torna-se então praticamente impossível vislumbrar aquele complexo todo que garante a verdade, não permitindo interpretações ao sabor dos apetites políticos ou adequação à moda de um dado momento. José Alberto Ribeiro exaustivamente traça o percurso da Rainha em Portugal e de forma ainda mais interessante, a vida e os afazeres de D. Amélia durante o longo período de exílio, metade da sua existência, em que ao contrário daquilo que dela muitos esperariam, jamais se desinteressaria do seu país. Da autoria de Rui Ramos, a excelente biografia de D. Carlos será decerto uma obra que inevitavelmente acompanhará esta agora apresentada pelo director do Palácio da Ajuda, ajudando-nos a compreender, mesmo de forma muito ténue e sempre aberta a outras contribuições vindouras, as personalidades do casal real e tão importante como a curiosidade pelos reis, o Portugal que fomos e em alguns aspectos nada recomendáveis, ainda continuamos a ser.
Quanto ao Palácio da Ajuda, esta grande mole de pedra é o elefante branco dos vários regimes que assistiram à sua construção, período de fugaz opulência e agora, o calamitoso e desnecessário decair de um símbolo. Grotesca e sintomática é a forma como dele se aproveitam as nossas autoridades, nada envergonhadas por receberem o mundo que oficialmente nos visita, num espaço que poderia ser bem diferente. A total ausência de vontade e de imaginação para a gestão ou angariação de recursos, é a constante daquele que sem dúvida poderia ser o mais importante espaço público da capital portuguesa. Neste momento, lembro-me de uma carta enviada há muitos anos ao então 1º Ministro Cavaco Silva, alvitrando-lhe uma opção mais económica e culturalmente mais valiosa que aquela decidida com o fim de dotar a capital com um espaço de renome. Em vez do projectado CCB, sugeri então a conclusão das obras da Ajuda e o pleno aproveitamento da nova área a construir para as actividades apontadas pelas autoridades como absolutamente necessárias. Nem sequer uma acusação de recepção de missiva alguma vez chegou às minhas mãos. É este o regime que temos e a ele estamos resignados.
Voltando à Rainha D. Amélia, será com todo o interesse e atenção que hoje mesmo iniciarei a leitura do livro.
Nuno Castelo-Branco
Fonte: Estado Sentido
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