(...) Critica a falta de apoio à Cultura e sobretudo aos novos projectos de qualidade, que considera estarem a ser abafados por “mediocridades instituídas”. Acusa J.S. de quase ter levado o País a uma terceira ditadura, mas mostra-se confiante nas novas gerações. A “mãe do rock português” saiu da prateleira com vontade de cantar até que a voz lhe doa, mas o rock progressivo de outros tempos já não tem lugar no seu reportório.
Por esta altura actua em festas onde muitos emigrantes portugueses marcam presença. São um lugar privilegiado para essas pessoas que procuram reunir--se com os seus, sentirem o seu país e que, de certa forma, sentem a música portuguesa como um elo de ligação. Como se sente nesse papel?
Não faço discriminação étnica. Estamos numa Europa comum. Acabou-se o problema da emigração, nesse aspecto. Tenho o maior respeito pelas pessoas que trabalham fora de Portugal, mas não vou modificar um centímetro o meu reportório para agradar à emigração. A emigração são portugueses e para mim essa palavra já nem existe.
E o José Cid ainda mantém o orgulho em ser português?
Tenho imenso orgulho. Sou extremamente português e tenho ideias muito concretas sobre o meu País, mas que infelizmente não têm sido cumpridas, desde o Marquês de Pombal.
Sempre criticou o facto de se valorizar mais o que vem de fora. E foi precisamente como forma de protesto contra as rádios que não divulgavam a música portuguesa que fez aquela polémica capa em que aparece nu, tapado apenas pelo disco de ouro. Portugal já mudou de atitude face aos seus artistas?
Só piorou. Hoje há projectos jovens que têm imensa dificuldade de divulgação, porque não encontram rádios nem imprensas, nem nada que os apoie. Em contrapartida, há mediocridades instituídas. Cantores que não cantam nada, letras medonhas, músicas que são plágios mundiais, que conseguem açambarcar o mercado de uma maneira que é castradora para o resto da criatividade. Parece que são eucaliptos. Há também música popularucha, ´populareira´, que não é música popular, que silenciou grandes projectos de música popular que se fizeram nos anos 80 em Portugal. Muitos deles fantásticos.
No início da sua carreira, com a banda Os Babies mostrava em Portugal música internacional, nomeadamente o rock que se fazia nos Estados Unidos da América. Teve influências dessas bandas no entanto, manteve-se sempre fiel ao português.
Eu gravei muitos temas em inglês mas não faço a minha carreira por cantar em inglês. Sou provavelmente o único cantor português que teve a oportunidade de ficar a gravar, em inglês, nos Estados Unidos, na Austrália e na África do Sul, mas não o quis fazer porque não queria emigrar, sempre preferi estar aqui. Não preciso de viver num túnel de ouro. Preciso de ser feliz e ter as minhas raízes.
E sobre os políticos portugueses o que pensa?
Estou sempre à espera do milagre de Fátima na política portuguesa. Mas não se tem verificado.
O que é que quer dizer o milagre de Fátima na política portuguesa?
Para ter-se uma visão estratosférica deste País. Uma visão do céu para este País e não de cá da terra a olhar uns para os outros. Era, por exemplo, perceber-se que o que nós temos de mais valioso para dar e vender é a cultura e o turismo, que são precisamente ministérios que não existem neste País. Se este País fosse bem pensado se calhar percebia-se que a música portuguesa vendia mais que talvez o fabrico de armas.
Assume-se monárquico e anarquista. Isso é possível?
Anarquismo é o que nós temos. Esta república é um anarquismo. Uma república que matou um Rei há 100 anos que era altamente culto, criativo e que tinha prestígio mundial. Instaurada sem sufrágio nacional. Teve duas ditaduras, a salazarista e a marcelista, e quase uma terceira. Esta última que pouco faltou para o ser. Se ele pudesse tinha transformado isto numa ditadura. Há falta de cultura, falta de consideração pelos idosos, falta de respeito para com aqueles que lutaram e morreram no Ultramar, para nada. A tal descolonização exemplar que muitos políticos falam, onde morreram um milhão e duzentas mil pessoas e que, na verdade, foi um dos maiores genocídios do último século. Há pessoas que estão forradas de dinheiro à custa de Angola e da tal descolonização exemplar. Portugal não é um País de justiça.
Teve uma fase desaparecido, em que pouco ou nada se falava de si. Foi uma retirada estratégica ou alguém o meteu na prateleira?
Nos anos 90 foi estratégica. Passar a ideia de que eu tinha acabado a carreira foi uma ratoeira que passei a algumas pessoas. Na verdade, gravei na década de 90 álbuns fantásticos como Camões, as descobertas e nós, com o Pedro Caldeira Cabral, Carlos do Carmo e Jorge Palma e que, desculpem-me lá, é bem melhor que o álbum das descobertas do Rui Veloso. Gravei ainda Ode a Garcia Lorca, com poemas do próprio e guitarras de Coimbra, Cais de Sodré e ainda um álbum pelos direitos humanos, a favor da causa de Timor Leste.
Mas alguém o tentou meter na prateleira?
Sim, tentaram. Há aí uma marca discográfica que me considerava perigoso e que gostaria que eu não me chamasse “a mãe do rock português”, mas eu sou efectivamente a mãe do rock português”. Tenho nomeadamente um álbum de 78 [10 000 anos depois entre Vénus e Marte] que foi considerado pela crítica americana e inglesa dos melhores do mundo. Portanto, não me venham com ideias.
Fala duma fase em que se dedicou ao rock progressivo. Esse tipo de registo ficou no passado ou será possível ressurgir na sua carreira?
Não há rock progressivo neste momento no mundo. Eu enveredei a minha voz para outras áreas, mas a minha obra está por revelar. E ainda bem. Já o meu concerto não, está feito. É um dado adquirido. Passa por dezenas de milhares de pessoas e é quase arrasador. As pessoas ficam presas.
Curiosamente foi o público mais jovem que veio a mostrar de novo interesse pelo seu trabalho. E que, de certa forma, o foi buscar à tal prateleira. Esperava por isso?
As novas gerações procuram as coisas verdadeiras. Gostam do meu lado rebelde que me faz lutar por causas que vêm a favor do futuro delas. Percebem que sou um cantor ao vivo. Comparam a minha voz com a de alguns monstros sagrados da música portuguesa e sentem-se mais enriquecidos comigo do que com essas vozes dadas como fantásticas. Os jovens não se deixam enganar. Têm um conceito muito claro daquilo que é bom e do que é assim-assim.
Auto-intitular-se mãe do rock português, foi uma forma de protesto pelo título de pai ter sido atribuído ao rui Veloso?
Sim, é verdade. A rapariguinha do shopping [tema de Rui Veloso] é prima do mestre de obras. 10 000 anos depois entre Vénus e Marte é a obra-prima do mestre. E não digo mais nada!
Um barão no rock
José Albano Salter Cid de Ferreira Tavares seria barão se vivêssemos numa monarquia. Mais precisamente Barão do Cruzeiro, título herdado do bisavô a quem foi concedido pelo rei D. Luís I. Nobrezas à parte, o músico, nascido em 1942, assume-se como um homem do rock e é dos mais populares e carismáticos artistas portugueses. Dispensa mesmo apresentações. Iniciou a sua carreira em 1956 com o grupo Os Babies, que mostrava ao País o rock que se produzia nos EUA. Popularizou-se como teclista e vocalista do Quarteto 1111, banda que revolucionou o panorama musical na década de 60 e em 1970 arrancou com uma carreira a solo que dura até hoje. O Festival da Canção foi durante vários anos uma montra do seu trabalho, evento que ficou marcado com canções como Balada para Dona Inês, Uma rosa que te dei, O meu piano, Porquê, meu amor porquê?, O largo do coreto, Aqui fica uma canção ou Um grande, grande amor. Quem não conhece?
(...) É verdade que gravou a música Amar como Jesus amou porque queria comprar um carro novo?
Não. Jesus amou tanto que não era de forma nenhuma materialista e portanto não tem nada a ver. Mas houve outras que sim. Não para comprar um carro novo mas para comprar outro carro, porque o meu tinha morrido. Eu não sou um Ronaldo. O meu estatuto cultural e moral não se resume a um carro novo. Mas assumo que fiz músicas comerciais porque precisava de pagar a renda, impostos e o colégio da minha filha. Foram elas canções como: 20 anos, Cabana junto à praia, A Anita não é bonita e outras.
(...) Esteve muito perto de ser uma das vítimas do caso Camarate. Fintou a morte em 1980 quando desistiu de acompanhar Sá Carneiro naquela aeronave que acabaria por se despenhar e causar-lhe a morte. O que é lhe passou pela cabeça?
Era uma viagem que me estava a ser imposta e, por uma questão de coerência, recusei-me a entrar naquele avião. Não queria fazer a campanha do general Soares Carneiro, já que tinha sido proibido de entrar em Angola durante seis anos, pela censura do antigo regime, precisamente por São José Lopes e por outras pessoas ligadas ao regime militarista angolano. Eu simplesmente não quis comprometer os meus ideais. Foi uma grande sorte.
Acredita em Deus?
Acredito, mas também já não há milagres. Aqui em Portugal não têm acontecido e até o de Fátima está por revelar. Eu tenho uma forma de acreditar em Deus que não passa por andar de joelhos em frente à capelinha das aparições.
O que espera do futuro?
Continuar a trabalhar enquanto tiver voz. Não me vou arrastar com uma pálida imagem, como alguns cantores e cantoras portugueses fizeram durante anos. Não se pode andar a correr em fórmula 1 e depois fazer rally paper no fim da vida. Ou ter 70 anos e uma namoradinha de 20.
Texto: Paula Lagoa
Fotos: Ricargo Graça