Celebrar o nosso 12.º aniversário. Esta entrevista ao herdeiro da coroa portuguesa D. Duarte Pio foi publicada originalmente na edição n.º134 da SÁBADO, de 23 de Novembro de 2006:
Impecável no seu fato azul-escuro, D. Duarte parece um mestre de cerimónias. Nunca perde a pose, nem as referências ao Colégio Militar. O alfinete da escola está preso à lapela do casaco, mas lembra-lhe a rebeldia: foi lá que fez uma greve de fome e que conheceu a primeira namorada num baile. O lado menos formal do herdeiro da coroa nota-se mais à hora do almoço, quando toma um batido de leite da Bulgária, come castanhas e fuma uns cigarros da Indonésia com travo a cravinho. Pequenos requintes do pretendente ao trono que, aos 61 anos, lança uma biografia – Dom Duarte e a Democracia (da Bertrand Editora), escrita por Mendo Castro Henriques. Na sala do seu palacete em Sintra fala da infância, dos amores e das conspirações políticas. Com muito sentido de humor e alguma nostalgia.
Porquê uma biografia aos 61 anos?
Porque dei contributos para o País que ninguém conhece. Como a primeira campanha por Timor, em 1987, organizada por mim e por Artur Albarran. Também falo das minhas causas: da agricultura, da educação, da ajuda aos países lusófonos.
Apesar de extensa, a biografia fala pouco da sua vida privada. Onde nasceu?
Nasci na Suíça e fui baptizado lá.
O seu padrinho de baptismo foi o Papa Pio XII.
Era amigo do meu pai e é por isso que tenho Pio no meu nome. Ele não foi ao baptismo, foi alguém em sua representação, mas ainda cheguei a visitá-lo no Vaticano.
E porque é que se chama Duarte?
Houve uma grande discussão em Portugal sobre qual seria o meu nome: uns queriam Miguel, em homenagem a D. Miguel, outros propunham Carlos, ou Pedro. Para desempatar, o meu pai pôs o seu nome. Mas nunca achei prático o filho ter o nome do pai.
Apesar de extensa, a biografia fala pouco da sua vida privada. Onde nasceu?
Nasci na Suíça e fui baptizado lá.
O seu padrinho de baptismo foi o Papa Pio XII.
Era amigo do meu pai e é por isso que tenho Pio no meu nome. Ele não foi ao baptismo, foi alguém em sua representação, mas ainda cheguei a visitá-lo no Vaticano.
E porque é que se chama Duarte?
Houve uma grande discussão em Portugal sobre qual seria o meu nome: uns queriam Miguel, em homenagem a D. Miguel, outros propunham Carlos, ou Pedro. Para desempatar, o meu pai pôs o seu nome. Mas nunca achei prático o filho ter o nome do pai.
Onde viveram durante o exílio na Suíça?
À beira do lago Thun, num chalé alugado. Um dia zanguei-me com os meus pais e fugi de casa. Tinha cinco anos e fui encontrado por um carteiro, que me levou de volta. Durante o trajecto, acompanhei-o na distribuição das cartas e fiquei amigo dos filhos dele, com quem ainda tenho contacto.
O que faziam os seus pais?
O pai era consultor agrícola, fazia pareceres sobre campos. A mãe tratava dos assuntos da casa e montava a cavalo.
Tratava os seus pais por tu ou por você?
Por pai e mãe. E eles tratavam-me por tu.
Aprendeu línguas estrangeiras na Suíça?
Os meus pais queriam que se falasse sempre português em casa, achavam que mais tarde podia aprender línguas estrangeiras.
Tinham empregados?
Tínhamos uma cozinheira.
Como conseguiam subsistir?
A minha mãe tinha alguns rendimentos do Brasil, que vinham da Companhia Imobiliária de Petrópolis, criada pelo meu bisavô, D. Pedro II, e que detém todos os terrenos da cidade. Cada vez que se vendia uma propriedade, pagavam-nos um por cento.
Como era a relação com os seus pais?
Não era nada de cerimónias. Eles tinham um espírito muito moderno para a época.
Deram-lhe educação sexual?
Explicaram-me o assunto de maneira muito natural: mostraram-me um boi e uma vaca a copular e achei aquilo um bocado nojento. Até aos seis anos, pensava que as crianças nasciam como cogumelos, não sei porquê. Talvez fosse romântico.
Quando voltou para Portugal?
Aos 7 anos, quando o exílio terminou por decisão do Parlamento.
Foram viver para onde?
Para uma casa emprestada pela dona Maria Borges [amiga de família], na Quinta da Bela Vista, em Gaia. Vivemos lá uns anos e depois fomos para uma casa que a fundação da Casa de Bragança disponibilizou em São Marcos, Coimbra.
Foi educado para não esbanjar?
Os meus pais ensinaram-me que era pecado desperdiçar dinheiro. O pai dizia que tínhamos de fazer a cama, porque quando Cristo ressuscitou dobrou os lençóis do túmulo.
Fazia a cama todos os dias?
Sim.
Quando tenho tempo
Nas casas por onde passou não havia luz eléctrica.
Cresci em quintas onde só havia candeeiros a petróleo e velas. Na minha casa em Sintra muitas vezes a luz vai abaixo com as trovoadas. E ainda me sirvo dos candeeiros antigos.
Como se dá com os seus irmãos?
De igual para igual. Acho que não sou, nem nunca fui, mandão.
Fazia amigos com facilidade?
Sim. Lembro-me que tive um furo no pneu da bicicleta e fui pedir ajuda a um acampamento de ciganos. Eles consertaram o pneu e depois convidei-os para a minha festa de anos. Mantive essa amizade muito tempo.
Como é que o tratavam, por você ou por dom Duarte?
Tratavam-me por tu. E eu também. Em criança nunca tratei ninguém por você. Mas não me passava pela cabeça tratar um professor por tu, como se faz agora em muitas escolas.
Antes da escola, teve lições particulares.
Dois anos, com um professor [Aprígio Rocha] que os meus pais arranjaram para nos preparar para a primária e para o liceu. Como vim da Suíça, não fui à escola desde o começo e tive um ensino mais acelerado.
Depois foi para o colégio Nuno Álvares, em Santo Tirso. Foi difícil a adaptação?
Não, havia grupos de alunos simpáticos. Fazíamos um retiro antes da semana santa. De vez em quando ainda faço retiros em Fátima.
A seguir foi para o Colégio Militar, também interno.
Diverti-me bastante. Embora se respeitassem os professores, fazia-se troça deles nas costas.
Também participou numa greve de fome, em solidariedade com um aluno castigado por copiar num exame.
Quase todos os alunos foram expulsos por fazer greve de fome. Mas a direcção teve de nos readmitir e retirar o castigo ao colega.
Passou fome ou fez batota?
Fazia-se contrabando. Os que não faziam greve levavam-nos a comida.
Era certinho ou rebelde?
Cheguei a fugir do colégio. Para o fazer tinha de pedir autorização ao graduado, um aluno mais velho que tomava conta de nós. Nessas fugas ia para uma tasquinha ali perto, chamada Os Amigos de Carnide. Nunca me apanharam.
Durante as fugas, excedeu-se no álcool?
Tinha bastante cuidado, porque os graduados controlavam-nos.
E a primeira namorada?
[Risos] Já estava no Colégio. Conhecíamos as raparigas nos bailes e elas vinham, sobretudo, de Odivelas. Uma lenda diz que havia um túnel que ligava o colégio de Odivelas ao Militar.
Como era a sua relação com Salazar?
Visitei-o duas vezes, uma antes de ir para África, como tenente da Força Aérea. Falámos sobre os problemas do Ultramar. Tinha 20 anos e expliquei-lhe a tese da transição suave, que era um esquema de autonomia alargada.
A tese que defendeu quando o País era governado por Marcello Caetano?
Sim. Quando estava em Angola, o director geral da Segurança [responsável pela PIDE-DGS] disse-me que tinha ordens do governo para me expulsar, mas desconhecia os motivos. Entretanto, o meu pai escreveu a Marcello Caetano, que me convidou para ir falar com ele. Disse-me que era lamentável a forma como eu tinha sido expulso e pensei que fosse um equívoco. Julguei que podia continuar com o projecto de eleições em Angola mas aí ele exaltou-se – respondeu-me que era uma coisa inadmissível.
Que projecto era esse?
Uma lista de candidatos às eleições para o Parlamento angolano, em 1972. E podia ganhar porque tinha imensos apoios.
Nessa altura, estava na Força Aérea e Marcello Caetano alegou que se continuasse em Angola corria riscos de vida. Foi assim?
Foi a desculpa que arranjaram. Tanto o MPLA como a UNITA, cujos elementos conheci em visitas a aldeias, concordavam com a minha tese: Angola não estava preparada para a independência de qualquer maneira. Mas quando o governo de Lisboa caiu nas mãos de quem nós sabemos, houve uma forte influência da União Soviética.
Com que base faz essa afirmação?
Tenho amigos russos que me apresentaram a antigos funcionários do KGB – alguns deles são monárquicos ferrenhos na Rússia. Na descolonização, os oficiais superiores das Forças Armadas entregaram o poder aos grupos políticos que a União Soviética patrocinava. No dia em que se abrir os arquivos do KGB vai haver surpresas sobre a verdadeira motivação do 25 de Abril: foi a União Soviética que encorajou a revolução. Certos elementos das Forças Armadas trabalhavam com a União Soviética.
Onde estava no 25 de Abril?
No Vietname do Sul, a convite do governo. Foi um ministro vietnamita que me telefonou a dar a notícia, eu não sabia de nada.
No pós 25 de Abril, onde vivia?
Aluguei uma casa em Lisboa, perto da Avenida D. Afonso III.
Temia retaliações dos revolucionários?
Não. Como sabia que o Copcon (Comando Operacional do Continente) ia buscar pessoas de forma arbitrária, fui dormir a casa de amigos durante uns tempos. Mas de dia estava em casa, porque as detenções eram à noite. Foi aí que prenderam o meu contabilista, a pensar que era eu.
Alguma vez votou?
Votei sempre nas eleições municipais e nos referendos. Não voto é nas eleições para o Parlamento, não quero tomar posições partidárias, nem nas presidenciais. Mas antes do 25 de Abril até fiz parte de uma mesa eleitoral, quando concorreu à lista independente monárquica.
Em 1976 fez o negócio da sua vida: comprou a casa de Sintra por 17.500 euros à família D’Orey.
Comprei por um pouco mais, mas foi um preço baixo. Quando andava a tratar dos papéis fui à câmara de Sintra e havia um funcionário com a cara de Estaline. Disse-lhe: "Comprei esta casa graças aos comunistas." Ele respondeu-me que afinal eles serviam para alguma coisa.
Como encontrou a casa?
Um pouco degradada. Tive de arranjar o telhado e as janelas. Depois, uns amigos caiaram-na como prenda de casamento.
Fez dois pedidos de casamento a D. Isabel, não foi?
O primeiro foi na catedral de Santiago de Compostela. Ela ficou de pensar. Como nunca mais dizia nada, achei que não queria. Passou quase um ano até fazer novo pedido. A Isabel foi passar férias ao Brasil e fiquei preocupado com a concorrência brasileira. Então, fui ter com ela a Ilhabela, na costa paulista. Estávamos num barquinho a remos e eu disse-lhe: "Tens de me dar uma resposta já ou atiro-te à água." Ela achava que nunca mais ia fazer outra vez o pedido. Não, a Isabel desconhecia as minhas intenções. Éramos amigos há tantos anos que percebi que havia coisas mais interessantes do que a amizade. E organizei a viagem a Santiago para pedi-la em casamento.
Sentia alguma pressão social para casar?
Existia há tanto tempo que já não ligava.
Teve muitas namoradas?
Algumas, sobretudo a partir dos 30 anos. Entusiasmei-me, mas as relações não corriam bem porque inconscientemente comparava-as com a Isabel, que conhecia desde os 7 anos.
Sente que algumas mulheres se aproximaram de si por ser o herdeiro?
Por uma questão de orgulho próprio, jamais pus essa hipótese.
Felipe de Espanha também se casou tarde.
Uma vez a rainha Sofia de Espanha ralhou comigo, porque estava a dar um mau exemplo ao Felipe. Disse-me: "Quando eu me queixo que o Felipe não se casa ele responde: ‘Mas veja o Duarte que se casou tão tarde e já tem três filhos. Não se preocupe.’"
A biografia diz que se atrasou no casamento.
Fui pontualíssimo. Vinha de um colégio dos Jerónimos com uma escolta de cavalos. Quando me sentei com o meu irmão Miguel, colocámos o cinto de segurança e filmaram esse momento. Depois a Prevenção Rodoviária pediu para usar esse filme: queria mostrar que até a 20 quilómetros, e com escolta, se devia usar cinto de segurança.
Venderam-se convites falsos, não foi?
Houve pessoas que não puderam ir e as secretárias venderam os convites a um preço muito alto. Alguém me admitiu que tinha comprado o convite por 2.500 euros. Depois houve um sujeito que enviou convites falsos para várias pessoas, por brincadeira. Algumas agradeceram e aí foram avisadas que não tinham sido convidadas. Mas houve uma figura pública que entrou assim, sem saber.
Quantos penetras foram ao casamento?
Sete ou oito.
E convidados?
Três mil. Achava que podia convidar presidentes de países distantes como a Índia, ou a Papua-Nova Guiné, porque eles não viriam. Afinal, vieram todos.
O seu filho mais novo, Dinis, herda a roupa do mais velho, o Afonso?
Sim. Temos de mentalizar os miúdos para a poupança.
Nem no Natal perde a cabeça?
Compro-lhes coisas interessantes e que eles gostam, como jogos educativos. Mas poucas. Se querem algo que não vale a pena, têm de ganhar para isso. O Afonso, de 10 anos, toma conta de crianças de amigos.
O Afonso já tem pretendentes?
As meninas perguntam muito por ele. Uma vez, encontrei uma menina alentejana vestida de branco, com uma coroa de flores na cabeça e perguntei-lhe se era uma fada. Sabe o que me respondeu? "Não, sou a noiva do Afonsinho." Outra vez, para impressionar as colegas, o Afonso deu um beijinho numa salamandra e ficou com urticária.
Será como os outros Bragança que só se casaram aos 50?
Não, com o seu charme vai arranjar alguém mais cedo. Deve casar-se com uma pessoa de boa formação moral e intelectual, de forma a sacrificar a sua vida pessoal pelo País.
Já está a preparar o Afonso para a sucessão?
Procuro não criar um peso, mas é óbvio que já percebeu a sua missão.
Já disse que não se importava nada que o Dinis casasse com a Infanta Leonor de Espanha.
Se isso acontecer, terei muito gosto. Nunca falei disso com os príncipes nem faço planos. Mas é complicado, se a Infanta for herdeira da coroa espanhola põe-se o problema da união ibérica.
Os seus filhos também acreditam que os bebés nascem como cogumelos?
Não. Desde pequeninos que perceberam que os irmãos estavam na barriga da mãe.
Na biografia, revela que só cortou o bigode uma vez por causa de uma aposta com uma prima.
Foi em 1989, quando atravessei a Amazónia. A dada altura não sabíamos a hora e fizemos uma aposta sobre isso, que perdi. Hoje mantenho o bigode porque a minha mulher gosta. Deixei-o crescer aos 22 anos, em homenagem a D. Pedro II do Brasil. Em 1974 os revolucionários tinham barba e eu também. Mas como não queria ser confundido com eles, cortei-a e só deixei o bigode.
Tem cuidado com o físico?
Às vezes vou ao ginásio e faço bicicleta em casa. Também corto lenha na quinta.
Nunca teve um problema de saúde?
Só sinusite, que costumo ir tratar às Caldas de Felgueiras. Acho que vão ter de me aturar até aos 90 anos, pelo menos.
Gostava de ter uma morte súbita.
Foi o que aconteceu à sua mãe.
Ela morreu com um derrame cerebral. Eu tinha 22 anos e acabava de entrar na Força Aérea, em Tancos. Pedi ao comandante para sair mas não tive coragem de dizer o motivo. Só disse que ela estava doente.
E o seu pai?
Foi com brucelose. A 24 de Dezembro de 1976 estava num espectáculo do Jamor a assistir a uma dança de timorenses com espadas. De repente, uma delas partiu-se e o espectáculo parou. Explicaram-me que quando uma espada se parte, um rei morre. O meu pai morreu naquele momento.
Como se relaciona com os conselheiros?
Há dois níveis de pessoas que me apoiam: um grupo de cinco assessores com quem me reúno regularmente, que trata da minha agenda e que faz sugestões sobre os meus discursos – embora seja eu que os escreva. E há 10 a 15 pessoas do conselho privado, que avaliam a situação do País e debatem o tipo de intervenções que devo fazer. Nenhuma delas é remunerada.
Das famílias reais europeias, com quem se dá melhor?
Com os grão-duques de Luxemburgo, meus primos, os reis da Bélgica e a família do Liechstenstein. Tenho óptimas relações com a família real espanhola, com a da Inglaterra e a da Dinamarca.
Conspiram muito contra si?
Algumas pessoas traíram-me com atitudes agressivas, como o [fadista ] Nuno da Câmara Pereira. Quando era solteiro, houve um grupo de radicais que não gostava da minha posição política como chefe da Casa Real e quis encontrar substitutos. Serviram-se do facto de eu não ter filhos e indicaram o nome do meu primo [Francisco Van Uden]. Felizmente, ele nunca apoiou essas fantasias.
Onde é que está a coroa?
Vergonhosamente escondida nos cofres do Banco de Portugal. O Estado não mostra as jóias da coroa aos portugueses e sem justificação manda-as para um museu de uma cidadezinha holandesa para serem roubadas. Agora que recebeu o dinheiro do seguro, quer gastá-lo no Orçamento em vez de fazer reproduções das peças roubadas.
27 Novembro 2016 • Raquel Lito